Cantar Para Sofrer: Lamentos Fúnebres no Nordeste do Brasil (Singing to Suffer: Mourning Laments in the Northeast of Brazil)

Resumo

Apresentamos neste artigo uma reflexão sobre a tradição musical vinculada ao catolicismo popular da região nordeste do Brasil, com foco especial na cidade de Juazeiro do Norte, maior centro de romaria popular do país. Procuramos aproximar a nossa discussão sobre o repertório musical aos estudos etnomusicológicos referentes aos lamentos fúnebres, em especial àqueles que estabelecem conexões entre música e fala, e os que exploram o âmbito das expressividades corporais conexas ao canto. A partir de uma análise de contorno melódico e da interpretação da narrativa textual apresentamos um estudo sobre a música "Maria Valei-me" analisando os elementos que concorrem para a produção do caráter sacrifical elaborado pelo canto.

Abstract

This article presents a reflection on the musical tradition connected to the popular Catholicism common in the northeast of Brazil, focusing especially on the city of Juazeiro do Norte, which is the biggest center of popular romaria (pilgrimage) in the country. The discussion is situated in relation to ethnomusicological studies of mourning laments, mainly those that establish connections between music and speech, as well as those that explore the scope of the corporal expressiveness concerning singing. The song "Maria Valei-me" is studied by means of a melodic contour analysis and interpretation of the textual narrative, analyzing the elements that contribute to the production of a sacrificial feature created due to the singing.

Introdução: uma cidade santa no sertão do Brasil

O caráter da religiosidade que se estabeleceu na maioria dos estados do nordeste brasileiro foi sobremaneira marcado pelo projeto catequético implantado pelos frades capuchinhos italianos, por ocasião das missões itinerantes realizadas na primeira metade do século XVIII. A despeito da crença no paraíso e na glória de Deus, predominava uma orientação religiosa que estimulava a autopunição com o fim de aplacar os “rigores da justiça divina” (Silva 1982), modelo responsável por disseminar uma iconografia e um repertório musical que testemunham e configuram esse caráter devocional. Além desse discurso teológico, para o qual a reconciliação com Deus era conseqüência de uma vida voltada para penitência, as condições sociais fortemente marcadas pela seca e pela fome fizeram do sofrimento e da morte uma das principais insígnias do tipo de catolicismo que se estabeleceu no sertão nordestino.

Essa marca devocional, da qual seria principal representante a cidade cearense de Juazeiro do Norte, afastava-se dos cânones oficiais, os quais as consideravam como expressão de fanatismo e caráter supersticioso. A posição adversa da Igreja Católica em relação aos cultos populares foi intensificada pelo espírito renovador implementado pelo Concílio Vaticano I,1 o qual, dentre outras orientações, foi fortemente marcado pelo propósito de reforçar o controle clerical, nos moldes do ultramontanismo europeu e pela determinação de coibir as manifestações em que predominava a liderança leiga.  Essa política de renovar o catolicismo tomando por modelo a ortodoxia romana ficou conhecida no Brasil por “romanização”,2 e como aponta Pinheiro (1989:195), o Estado do Ceará constituiu-se uma “área de romanização por excelência”,  a qual teve como primeiro Bispo D. Luiz Antônio dos Santos, autêntico propagador do modelo reformador emergente.3 A aplicação da política de renovação no interior do nordeste brasileiro encontrou algumas dificuldades, pois além do combate eclesial imposto às manifestações do laicato, houve também, e principalmente, tensões internas envolvendo a própria hierarquia clerical.4 Essa postura da Igreja não recebia o apoio do povo, criando certas reservas em relação a sua autoridade, ponderações que no nosso entender ainda resistem silenciosamente na memória e perpassam a compreensão romeira em relação ao poder sagrado da Igreja.

Além do formato penitencial da catequese missionária e das prédicas dos sacerdotes simpáticos a este modelo pastoral,5 um acontecimento em especial protagonizado pelo Padre Cícero, então capelão de Juazeiro do Norte, conferiu a este município a chancela de cidade escolhida pela Providência, contudo deflagrou uma crise religiosa que marcaria profundamente a cultura, a política e a religiosidade nordestina. Numa missa em honra ao Sagrado Coração de Jesus celebrada no dia 1º de março da Quaresma de 1889, a hóstia distribuída à paroquiana Maria de Araújo verteu-se em sangue, acontecimento que se repetiria durante dois meses todas as quartas e sextas-feiras da Quaresma e que levou o Monsenhor Monteiro, então reitor do Seminário do Crato, município vizinho, a organizar uma romaria em direção ao povoado de Juazeiro do Norte, em cuja oportunidade, durante o sermão apresentou como sinônimo da manifestação prodigiosa da Providência os panos manchados pelo sangue que brotara da hóstia recebida por Maria de Araújo, e que segundo o clérigo tratavam-se do sangue de Jesus Cristo. Apesar dessa primeira manifestação pública, apenas em 1891, quando da repetição do prodígio, a imprensa cearense deu notoriedade ao fato, o que na óptica de Della Cava (1976) provocou um conflito eclesiástico na hierarquia católica brasileira e promoveu “um cisma em potencial dentro das fileiras do catolicismo do Nordeste”.

O “milagre” que dentre outras consequências referendara junto aos romeiros a santidade do Padre Cícero e da cidade de Juazeiro do Norte, não recebeu acolhida pela Igreja Católica, a qual considerou o acontecido um embuste (Della Cava 1985) responsável por fomentar o fanatismo religioso em todo Nordeste, posicionamento que rendeu ao Padre Cícero sérias sanções eclesiásticas chegando o sacerdote a receber como punição a suspensão das ordens. O brado vigoroso que se levantou em todo Nordeste permanece ainda hoje no discurso do povo: “a Igreja diz que ele não é santo, mas agente sabe que é”. Frases como esta, ditas em tom de acanhamento, são precipitadas frequentemente, não apenas entre os devotos de Juazeiro, mas da boca daqueles que para ali acorrem na esperança de alcançar graças, para render tributos de gratidão ou apenas para participar de romarias. Entre os romeiros, não há dúvidas sobre o milagre, tampouco sobre a santidade do Padre Cícero, sendo impensáveis quaisquer declarações que interpele o mérito da questão.

O afluir de miríades de romeiros, seja para estabelecer residência ou para participar de romarias, propalou um tipo muito especial de epifania, que materializada nos objetos, na iconografia e, sobretudo, na música revela aspectos desse credo religioso, os quais não são acessíveis através de dispositivos verbais de análise. Este artigo se concentrará no exame da componente musical, e em especial do bendito6 "Maria Valei-me", um dos mais importantes da região, procurando examinar como o repertório musical dos benditos constitui uma alternativa para se conhecer a intimidade simbólica desse credo religioso, a partir do exame dos mecanismos sonoros e corporais mobilizados na produção de uma experiência de sofrimento e sacrifício. O percurso metodológico que adotamos considera que o estudo da dimensão sacrifical dos benditos deve considerar inicialmente a função que a música desempenha nos ofícios de caráter penitencial, por essa razão iniciaremos a discussão com algumas considerações sobre o de rito de exéquias e as cerimônias de autoflagelação.

Morte e flagelação

A religiosidade popular do nordeste brasileiro possui uma componente estética extremamente significativa no que se refere à elaboração de modos de conceber a experiência com o sagrado. A música, seja embalando coreografias de danças religiosas, bendizendo o Menino Jesus em celebrações natalinas ou marcando o ritmo dos golpes do cilício nas cerimônias de flagelação, assume sempre um lugar privilegiado, sendo impossível conceber uma procissão, uma novena, uma quermesse ou um funeral sem a “animação” dos benditos. A ausência de controle eclesial sobre os modos de devoção fez com que a religiosidade popular nordestina sofresse forte influência das lideranças leigas responsáveis pela administração de pequenos ritos e cerimônias religiosas, influência notada principalmente nas cerimônias relacionadas à morte e nos ofícios de maior teor penitencial, razão pela qual os benditos fúnebres são considerados verdadeiros amuletos que reúnem, de um lado, as funções de purificação da alma, quando cantados em contexto fúnebre; de outro, a capacidade de proteção do corpo, quando usados na intenção de afastar perigo iminente em relação à vida.

O rito de exéquias e as cerimônias de flagelação constituem os dois espaços em que se manifesta com maior intensidade a componente penitencial da religiosidade popular nordestina. O canto atravessa as duas cerimônias e é a substância que elabora o conteúdo sagrado dos procedimentos rituais. Conhecida em muitos locais por Sentinela, a forma popular do rito mortuário disseminada no nordeste do Brasil está praticamente extinta, estando sua realização restrita a algumas localidades rurais, quase sempre sobre a coordenação de rezadores mais velhos que preservaram a tradição em seus povoados. O rito constitui-se de três momentos principais, podendo ser realizado após a morte ou quando o estado do moribundo faz recear morte próxima: a chegada, quando se reza e canta saudando os donos da casa; uma parte intermediária que visa, sobretudo, despertar o desejo de arrependimento, ou, no caso de a morte já haver ocorrido, clamar a Deus pela salvação da alma; por último, a despedida, que se destina a ressaltar a saudade e o sofrimento dos que permanecem no pecado.

As cerimônias de flagelação constituem outra modalidade de ofício penitencial e acontecem geralmente durante a madrugada da semana santa e têm a finalidade de expiação dos pecados a partir da dor provocada pelas lâminas dos cilícios que ferem e sangram os corpos dos penitentes. Durante todo processo de açoite, os benditos assumem a função de oferecer o sacrifício a Deus, numa postura de resignação e penitência que imprimem à cerimônia um caráter sacrifical. Alguns benditos especiais são igualmente usados nas cerimônias de flagelação e no rito mortuário o que aproxima, em caráter emocional, as duas cerimônias. Tais benditos, mesmo quando cantados fora desses contextos instauram uma ambiência penitencial construída a partir de um martírio simbólico, de um sacrifício sem derramamento de sangue propiciado pela experiência do canto. Analisaremos neste artigo o bendito "Maria Valei-me", um dos principais benditos fúnebres da região, o qual além da utilização no contexto mortuário tem aplicação no cotidiano religioso, sempre acionado em situações que necessite maior poder sagrado.

Se pensado no âmbito da literatura etnomusicológica, o nosso empreendimento analítico se ajusta aos estudos que conferem à dimensão performática dos lamentos fúnebres uma forte ligação entre música e corpo, sendo muitas vezes, assinalada a existência de um limite muito tênue entre música, fala e pranto. A proximidade entre música e choro nos lamentos na tradição báltico-finlandesa é denotada pela existência dos termos itkeä äänellä para designar um tipo particular de expressividade musical que se aproxima a um “chorar cantando”. Nos lamentos funerários karelianos, ou itkuvirsi o lamentador precisa guiar a alma do extinto até a terra dos mortos – Tuonela e recompor o equilíbrio social e coletivo através da “troca” de mensagens entre os dois mundos, agindo como uma ponte entre eles. Ele necessita dominar todo um código de performance e de som. Segundo Elizabeth Tolbert (1990), afeto e power são transmitidos através da música, da língua, do gesto e dos chamados ícones do choro. Esses e muitos outros estudos reforçam o argumento defendido por este artigo de que o estudo da relação entre música e sacrifício articulada pelo canto dos benditos está intrinsecamente relacionada às interações entre música (som) e corpo acionadas durante canto.

Com raríssimas exceções, como no caso do estudo sobre os cantos litúrgicos etíopes apontado por Kathryn Vaughn (1988), as análises de séries de tempo e contorno melódico têm insistido no uso da notação clássica ocidental. No caso do repertório tratado neste estudo, uma análise que se baseasse unicamente no registro de alturas tomadas enquanto conjunto de valores discretos de freqüências e na notação proporcional de relações temporais desprezaria certas sutilezas sonoras essenciais para o estudo da significação dos benditos. Na análise do bendito "Maria Valei-me" que apresentamos a seguir exploraremos as particularidades referente ao contorno melódico, à afinação, ao timbre e à irregularidade rítmica. No aspecto textual examinaremos as relações de paráfrase que este bendito estabelece com uma das orações católicas mais significativas para a região. Na intenção de entender os processos de produção de ambiência penitencial, comentaremos as propriedades texturais engendrada pela falta de sincronia entre as vozes.

Ícones sacrificais em "Maria Valei-me"

No catolicismo popular do nordeste do Brasil a música constitui-se um dos mais importantes dispositivos de transmissão de conhecimento religioso e produção de sacralidade, cuja função principal para o nosso estudo está relacionada à propiciação de uma experiência simbólica de sofrimento. A performance relativa ao canto dos benditos revela um modo de conceber uma relação corpórea como o sagrado, em que o corpo atua como depositório de uma memória e de uma ética que tem na contemplação e experiência do sofrimento sua principal fisionomia. O exemplo apresentado a seguir ilustra uma possibilidade para análise de processos não narrativos que operam na produção de uma ambiência sacral, neste caso a partir de propriedades psico-acústicas e da narrativa textual. O bendito que analisaremos é um dos poucos em que não se notou variações melódicas substanciais nos vários registros efetuados. "Maria Valei-me" é considerada uma reza forte, muito poderosa. As gravações contempladas em nossa análise foram realizadas em quatro contextos distintos: na ordem de penitentes do Sitio Cabeceiras no município de Barbalha, Estado do Ceará;7 cantada por D. Edite pela rezadeira de Renovação;8 junto ao Sr. Nilton, sacristão da Igreja de São Francisco; e na ordem de penitentes Aves de Jesus, esses três últimos residentes em Juazeiro do Norte – CE.

“Você não sabe cantar'Maria Valei-me'”! Era assim que com certa angústia aos poucos eu descobria que meu ouvido habituado à escuta e análise de música clássica ocidental era incapaz de apreender nuances essenciais para que a minha entonação conseguisse corretamente reproduzir este bendito. A correta emissão da altura e do ritmo e mesmo a tentativa de alcançar um timbre semelhante não bastaram para obter a aprovação de alguns rezadores, existiam outras dimensões das quais eu não me dava conta na ocasião, e que eu era incapaz de entender e, portanto, executá-las, pois mais do que subverter as quadraturas do sistema de notação musical europeu, no que alude a temperamentos de oitava, ritmo, etc., transcendiam o próprio domínio do sonoro. Na verdade, não se travava de aprender a cantar, mas de “rezar” "Maria Valei-me", ou quem sabe, de “ser” "Maria Valei-me", como certa vez me sugeriu um artista da região.

O bendito "Maria Valei-me" foi escolhido para guiar esta análise em função de estar presente na maioria das cerimônias do catolicismo popular praticado na região nordeste do Brasil: seja nos simples ofícios diários, nas cerimônias de flagelação ou no rito mortuário, interessando-nos, nesse primeiro momento, os processos de percepção e construção simbólica das estruturas sonoras que elaboram o caráter penitencial.  Apresentamos abaixo uma transcrição aproximada da variante mais representativa deste bendito e, em seguida, um gráfico que explora elementos da distribuição frequencial ao longo do tempo, os quais não são informados pelo registro da partitura.9

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Track 1: "Maria Valei-me" – D. Edite


Track 2: "Maria Valei-me" – Sr. Severino


Track 3: "Maria Valei-me" – Sr. Aves


Track 4: "Maria Valei-me" – Sr. Newton

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Figura 1: Contorno melódico do trecho inicial do bendito "Maria Valei-me" interpretado por Dona Edite.

O contorno melódico mostrado acima se refere à parte inicial do bendito. A extensão melódica situa-se no âmbito de aproximadamente uma oitava com o predomínio de alturas aproximadas a 200 e 250 Hz. As flutuações de freqüência vistas no gráfico transcendem àquelas próprias da entonação vocal e constituem um padrão característico dos exemplos registrados. Outro aspecto singular revelado pela observação do contorno melódico é a presença de alguns intervalos justos,10 com um léxico intervalar exibindo, em certos momentos, relações frequenciais incomuns à prática musical ocidental, como 7/6 (terça menor temperada acrescida de 1/6 de tom) e 9/7 (terça maior temperada acrescida de 1/6 de tom).

Outro aspecto digno de nota e que aproxima o exemplo em questão do já observado em vários estudos sobre lamentos fúnebres é que a despeito de apresentar uma gama considerada de variações em sua micro-estrutura, percebe-se a presença de arcadas melódicas11 que partem de uma região grave fortemente marcada por uma configuração de instabilidade frequencial compatível com o modo da fala. Esta constatação apresenta uma possível correspondente acústica para o fato de não serem bem delimitadas as distinções entre prece-hino, reza-louvor, enfim, música-reza, não fazem parte da cosmologia dos rezadores. O que distingue oração de música (bendito) é, em última instância, o uso dado a cada prática, estando os dois exercícios contidos no campo da reza, sendo o bendito um tipo especial de reza. Observou-se ainda, consideráveis assimetrias em outros planos sonoros—instabilidade de amplitude e de metro—com grande ênfase dada a determinadas sílabas e reforços articulatórios às vogais. São apresentados abaixo alguns contornos melódicos que chamaram atenção por suas recorrências nas diversas interpretações analisadas.

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Figura 2: Embelezamento da sílaba “vo” em três versões analisadas do bendito "Maria Valei-me" (cantada por D. Edite, Sr. Aves e Sr. Nilton).

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Figura 3: Modelos de portamentos no bendito "Maria Valei-me".

Do ponto de vista da narrativa textual, "Maria Valei-me" enquadra-se dentro de um conjunto de benditos em que predominam reiteradas súplicas dirigidas a Virgem Maria. Os louvores à doçura e à misericórdia maternal de Nossa Senhora se ajuntam aos pedidos de perdão e ao reconhecimento da condição de pecador, temáticas que emprestam ao bendito duas forças especiais: uma que aponta para uma mística voltada para os rigores da justiça divina, outra que declara uma ascese que tem na relação afetiva com o sofrimento da mãe do salvador uma esperança de salvação. Uma curiosidade revelada por nossa análise é que o "Maria Valei-me" trata-se na realidade de uma curiosa paráfrase poética da oração Salve Regina. Percebe-se na comparação apresentada do quadro abaixo como o texto do bendito acentua a urgência da súplica e a intensidade do sofrimento narradas pela oração. A expressão vale de lágrimas, por exemplo, transforma-se em Neste vale triste/Onde a pena existe/De lágrima cheia/De miséria e ais. O sentido impresso pela palavra pena, que está apenas implícito na versão original, confere ao verso uma relação de causalidade com a condição de pecador, e aplica ao texto uma carga emocional muito mais forte, pois transforma o vale triste numa metáfora do inferno, cheio de miséria e ais. Esse recurso mobilizado pela paráfrase pode ser percebido em várias partes do texto, construção que empresta à narrativa um caráter mais dramático e subjetivo, aspectos que serão ressaltados sobremaneira durante o canto.

Sobre o quadro, as colunas apresentam a versão parafraseada e a original. A divisão do texto obedeceu ao discurso musical, sendo cada estrofe correspondente a um mesmo grupo de frases melódicas. O canto é executado em formato responsorial, em que um rezador puxa a parte principal e um grupo responde o refrão. Note-se que a parte final de cada estrofe encontra-se grafada em itálico referindo-se ao refrão cantado pelo grupo. As demais partes cabem ao rezador principal.12

"Maria Valei-me"
Salve Regina

Maria Valei-me (Bis)/Aos vossos devotos
Vinde socorrei
Vosso amor se empenha/Ó Virgem da Penha/Penha onde mora
Na fonte vital
Na fonte vital\ Na fonte vital

Salve Rainha Mãe de Misericórdia

Salve, oh! Mãe de Deus (Bis)/Rainha suprema/Sobre os anjos seus
Sois Mãe de concórdia/De misericórdia/Vida e doçura
Esperança sois
Esperança sois\ Esperança sois

Vida doçura e esperança nossa, salve!

Oh! Mãe do Senhor (Bis)/Excelsa Maria/Do trono de amor
Salve, ouvi os brados/Pois que os degredados/Da triste Eva filhos
Vimos suspirar
Vimos suspirar\ Vimos suspirar

A vós bradamos os degredados filhos de Eva

Gemendo de dor (Bis)/Chorando de mágoa/Pedindo a Deus favor,
Neste vale triste/Onde a pena existe/De lágrima cheia
De miséria e ais
De miséria e ais\ De miséria e ais

Gemendo e chorando neste Vale de Lágrimas

Ouvi eia pois (Bis)/Nossa advogada/Mostrai quantos ais
Olhos piedosos/Misericordiosos/A nós degredados
Terna mãe valei
Terna mãe valei\Terna mãe valei

Eia pois advogada nossa/ Esses vossos olhos misericordiosos a nós volvei

Depois de acabar (Bis)/O cruel desterro/Dignai-vos mostrar,
A Jesus infinito/Que é o fruto bendito/Desse feliz ventre
Oh! Mãe de Jesus
Oh! Mãe de Jesus\ Oh! Mãe de Jesus

E depois deste desterro/ mostrai-nos Jesus/bendito fruto do vosso ventre

Oh! Clemente, ouve-nos (Bis)/Ó pia, valei-nos/Oh! Doce, acudi-nos,
Oh! Virgem Maria/Que é Deus que nos cria/Tristes dor no peito
Por todos rogai
Por todos rogai\ Por todos rogai

Ó clemente, ó piedosa, ó doce, sempre Virgem Maria

Para que por nós (Bis)/As promessas suas/Mereçamos nós,
Assim suplicamos/Para que vejamos/Na eterna glória
Para sempre amém
Para sempre amém\ Para sempre amém

Rogai por nós santa Mãe de Deus/Para que sejamos dignos da promessas de Cristo

Humilde oferecemos (Bis)/A Vós, Virgem Senhora/E ao Vosso bento Filho,
Do céu e da terra/Rainha da Glória/Louvores vos damos
Aceitai Senhora

 

Cantar para sofrer

Em função de a contemplação e a experiência do sofrimento ocupar uma posição capital na economia de salvação de Juazeiro do Norte e da maioria dos sertões do nordeste do Brasil, os benditos que narram os martírios infligidos a Jesus e aos santos, bem como aqueles que ressaltam a condição de pecador e a aflição das almas condenadas ao inferno, exercem função especial no conjunto do repertório. Eles funcionam como dispositivos de martirização simbólica do corpo, pelo qual se opera um sacrifício incruento simbolicamente propiciado pela performance do canto. Os estados de emoção são inicialmente coordenados pela sequência narrativa do texto, em função do sofrimento ou das súplicas piedosas revividas na contemplação do relato. No decorrer do canto o que se observa é que passa a importar menos o que se diz, e mais a construção fisionômica e performática de um espaço de penitência que investe o grupo numa espécie de estado de flagelação espiritual. Nessa etapa, os refrões ciclicamente repetidos em formato responsorial, no qual se alternam as partes do rezador e do grupo, vão ganhando em intensidade expressiva.  Começa a ocorrer um maior desencontro entre as várias vozes dos que respondem, situação que modela uma textura sonora soluçante, cujo efeito dramático prevalece em relação à mensagem do texto. Antes mesmo que se conclua a parte do rezador já se começa a ouvir resposta do grupo, realizada sem qualquer sincronia, sobretudo no início. A antecipação métrica, a falta de sincronia entre as vozes, o progressivo alargamento do tempo da resposta, a sucessão de portamentos para realização dos saltos, os quais se intensificam no decorrer do canto, configuram o que denominamos de forma-sacrifício.13 

A importância de um determinado bendito dentro do credo religioso penitente está fortemente associada a sua capacidade de engendrar sofrimento e produzir um espaço de penitência. Para os benditos considerados como fortes, geralmente se exige certa preparação antes do canto, como uma sucessão de rezas e gestuais e até mesmo um local ou circunstância específica, como velórios, por exemplo.  Certa feita, numa entrevista junto à ordem de penitentes Aves de Jesus em Juazeiro do Norte, me foi exigido aprender a participar do canto para realizar uma gravação. Tratava-se do Pranto de Nossa Senhora,14 um dos benditos mais importantes da região. Eu já havia conseguido realizar algumas gravações junto a outros rezadores, entretanto estes o consideram um bendito difícil de rezar, quase sempre se limitando a cantar apenas um trecho, ou no máximo uma coluna.15 Depois de um longo processo de convencimento, baseado no argumento de que outras pessoas gostariam de aprender cantar o Pranto, mas não havia quem ensinasse, eu fui convidado a entrar na casa e me ajoelhar de frente para um pequeno altar encostado na parede. Depois de várias invocações e preces iniciais, o canto foi realizado por inteiro. Ao terminar a música propriamente dita, teve início a fase de oferecimento, na qual foram proclamados vários vivas em saudação aos principais santos do altar. Saímos da sala.

Oração falada e bendito são qualidades de reza. Não existe entre eles uma diferença de natureza, mas de grau, semelhante àquela percebida entre a imagem de dois santos, em que a primazia e o puder são devidos principalmente à capacidade de impregnar sofrimento nos espaços onde são postos e nos atos de contemplação dos quais se fazem objetos. Assim como os santos mais cultuados em Juazeiro no Norte têm sua história e iconografia associados à dor e ao martírio, assim também os benditos mais poderosos são aqueles em cuja narrativa predomina o sofrimento de Jesus ou as súplicas de perdão em razão dos pecados, na maioria das vezes destinadas à Nossa Senhora. Enquanto reza é uma designação genérica que abarca benditos, orações e  benzeduras, o termo bendito aplica-se unicamente a músicas religiosas. A diferença de grau que comentávamos refere-se ao fato de o bendito ser considerado mais poderoso do que a oração falada, depreendendo-se esta conclusão dos casos em que existem para o mesmo texto as formas falada e cantada, sendo esta última considerada mais fina, mais forte. Em relação à fala, o canto possui a propriedade de engendrar no texto maior grau de sofrimento, por isso obriga a observância de um maior rigor relativo às regras de execução, se comparado àquele aplicado às orações verbalizadas. O líder da ordem de penitentes Aves de Jesus explicando essa diferença forneceu a seguinte explicação:

Rezado é oração, cantado é hino, é bendito. Vou dar uma explicação: é melhor cantar hino, glórias a Deus, do que rezar um rosário na hora do meio-dia no mês de janeiro em cima das pedras duras, de joelhos. Cantar são dois votos de coração: mental e vocal.

O "Maria Valei-me", assim como todo repertório dos benditos fúnebres, organiza no corpo uma experiência de síntese: sensações, memórias, temores, culpa, e outros estados de emoção são excitados durante a performance e modela um corpo-vítima,16 cujo suplício, ao modo sacrifical, purifica o pecador e restaura a aliança com Deus. Assim como os altares caseiros incrustam na casa, uma “semelhança” e experiência de igreja,17 o canto de alguns benditos especiais, sobretudo quando realizado em grupo, imprime no corpo uma experiência penitencial. Aristóteles supunha no homem a existência de um pensamento estritamente unido ao corpo, afirmando, parafraseado por Sartre (1964) que “Não há um só pensamento que não seja maculado de corporal”. Algo semelhante nos parece ocorrer na religiosidade de que estamos tratando: o altar, pensado como o corpo místico da casa, instala na parede a fisionomia visual da devoção religiosa; enquanto o bendito, realizando uma operação similar, encarna no corpo uma geografia de penitência que o separa do mundo comum das coisas. Nos dois contextos, em sua forma e função, encontram-se representados os cânones principais daquilo que pode ser pensado como uma poética do sofrimento.

Fotografias


Photo 1: instrumentos utilizados para rituais de flagelação
Photo 2: D. Edite (Rezadeira)


Photo 3: Ordem de Penitentes do Sítio Cabeceiras


Photo 4: Ordem de Penitentes Aves de Jesus

Notes

1. Concílio ecumênico realizado entre os anos de 1869 e 1870 que teve dentre as suas determinações o propósito de restaurar o prestígio da ortodoxia romana.

2. A este respeito, Ivan Manuel (2000:135) alerta para a cautela quanto a atribuir à influência do movimento de renovação do catolicismo sobre a religiosidade rústica uma uniformidade nacional, e, neste sentido, ressalta “a impropriedade teórica e metodológica de se abordar o processo de romanização do catolicismo brasileiro como se fora um processo uniforme e de abrangência nacional”.

3. Criada em 1859, a Diocese do Ceará foi fiel representante desta orientação, como se nota observando a especificação dos seus objetivos, dentre os quais figuravam os de “restaurar o prestígio da Igreja e a ortodoxia da sua fé” e “remodelar o clero tornando-o exemplar e virtuoso, de modo que as práticas e crenças religiosas do Brasil pudessem ficar de acordo com a fé católica, apostólica e romana de que a Europa se fazia então estandarte” (Della Cava 1985:35).

4. Em Juazeiro do Norte, maior centro de romaria popular do Brasil, essa tensão pode ser deduzida das sansões eclesiásticas impostas ao padre Cícero e ao padre Ibiapina, os dois padres de maior prestígio popular no sertão cearense, os quais a despeito das punições que lhes foram infligidas, eram referência de apostolado e exemplo de santidade para o povo do sertão.

5. Em seu estudo sobre os acontecimentos relativos a Juazeiro do Norte entre os anos de 1889 e 1934, Ralph Della Cava cita alguns acontecimentos que comprovam o rigor penitencial presente na conduta de alguns padres católicos. Há relatos de que o Padre Felix, provável fundador, da Sociedade dos Penitentes do Crato, cidade vizinha de Juazeiro do Norte, chegava a se flagelar dentro da igreja durante os sermões.

6. Bendito é como são chamadas as músicas religiosas que compõem o repertório musical relativo à religiosidade popular do nordeste brasileiro.

7. Grupo de homens que ainda preserva a tradição do autoflagelo, atualmente restrita à época da Semana Santa.

8. Renovação é como resumidamente são chamadas as cerimônias de Renovação ao Sagrado Coração de Jesus. Trata-se de uma cerimônia administrada por um rezador leigo que tem por objeto renovar a entronização da Imagem do Coração de Jesus na casa do devoto. Solenidade realizada anualmente, sempre no mesmo dia em que a imagem foi entronizada.

9. O gráfico foi realizado através do software Winpichpro e contamos com a colaboração do prof. Cristiano Cardoso.

10. Utilizamos o termo “justo” para designar intervalos reduzíveis a razões de “pequenos” números inteiros. Apesar da presença de tais relações intervalares nessa e em outras versões desse bendito, e em outras músicas do repertório, não se pode afirmá-los enquanto constantes que atravessam todo sistema musical, carecendo tais indagações de um espaço amostral mais expressivo.

11. Um estudo estatístico sobre a presença de arcadas melódicas, e suas configurações, em canções folclóricas européias pode ser visto em Huron (1996).

12. Dentre os arquivos de áudio que anexamos a este artigo constam execuções em que o rezador canta todo bendito sozinho, este fato deve-se às condições do registro, em que não havia um grupo para responder.

13. Expressão cunhada a partir da forma-riso desenvolvida por Canevacci (1984), não se pretendendo, entretanto, aludir a analogias semânticas entre as duas formas. Esta discussão está em fase de desenvolvimento em nossa tese de doutorado (Universidade de São Paulo - USP).

14. Este bendito, ao lado de "Maria Valei-me" e do "Ofício de Nossa Senhora" constituem as músicas mais importantes de todo repertório de benditos. O "Pranto de Nossa Senhora" é uma tradução poética da oração Stabat Mater.

15. Esta expressão foi bastante ouvida nas pesquisas de campo para declarar que o bendito não seria cantado por inteiro. O termo remete à distribuição gráfica do texto no papel, sobre o qual as estrofes eram distribuídas em colunas.

16. Este conceito tem por base teórica a definição de Consagração desenvolvida por Mauss e Hubert no Ensaio Sobre o Sacrifício. O artigo que apresenta esta discussão será publicado no próximo número da revista Iluminuras (www.seer.ufrgs.br/index.php/iluminuras), previsto para o mês de agosto\2010.

17. A discussão referente à iconografia religiosa penitente somada à reflexão sobre as relações entre música, corpo e sacrifício compõem  matéria principal de nossa tese de doutorado que está em fase de conclusão.

References

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